Há milénios ele já existia e até hoje é encontrado em sociedades primitivas, da Ásia às Américas. Não tendo paralelo no mundo civilizado, tem sido objeto de estudo de antropólogos do mundo inteiro.
TEXTO DE EDNA DE ANDRADE
Numa tribo da Ásia Central, um rapaz passou a ter comportamento estranho. Fechou se em si mesmo, abandonou a companhia dos amigos e familiares, passava horas a caminhar sozinho pelos bosques. Depois, começou a cantar sem motivo, a falar animadamente no sono, a ter visões assustadoras. Mas o pior estava por vir.
Perdia a consciência várias vezes ao dia, ficava violento e ameaçava fisicamente os que dele se aproximavam. Ficou claro inclusive para ele mesmo que não mais poderia permanecer na comunidade. Injuriando a todos, penetrou na floresta.
Ali permaneceu, comendo folhas e raízes, bebendo água onde a encontrasse. Atirou se várias vezes em torrentes, tentando suicídio. Feriu se com uma faca, queimou deliberadamente várias partes do próprio corpo. Seu comportamento era selvagem. Atacava e matava qualquer animal que encontrasse. Passou assim cerca de uma semana.
Então, extenuado, sujo e cheirando mal, retornou ao vilarejo.
Foi recebido como um herói pelos companheiros. Reuniram se todos ao seu redor, para ouvir suas palavras de sabedoria e suas profecias para o futuro. O rapaz tinha superado duras provas de iniciação, e era agora um xamã mago, sacerdote e doutor.
Nas modernas sociedades não existe uma figura que possa ser comparada à do xamã primitivo. Ele é médico, psicoterapeuta, sacerdote, médium, fazedor de chuva, guardião da consciência tribal. Preocupa se com os destinos da tribo, e com a saúde física e mental de cada um de seus membros.
A palavra xamã deriva da língua dos tungus, tribo da Sibéria. É preferível aos termos curandeiro e feiticeiro, porque não tem o seu sentido negativo, restritivo, e de conotações sensacionalistas.
O xamanismo é um fenômeno mundial de grande importância. Foi primeiramente identificado por antropólogos ocidentais entre as numerosas tribos da Ásia Central. Mas é também comum entre as populações da Indonésia, Bornéu, África, Austrália, Américas do Norte e do Sul.
Bons, neutros e maus espíritos
O mundo onde vive e age o xamã é completamente estranho ao homem civilizado. O xamã, de fato, vive em dois mundos: o ordinário, que nós vemos ao nosso redor, e o mundo das sombras, habitado por uma fantástica hierarquia de bons, neutros e maus espíritos. Na cosmologia xamanista esses dois mundos estão em constante interpenetração. Não existe uma divisão palpável. Os espíritos podem dissimular-se em seres humanos, e podem mesmo possuir um ser humano real (fenômeno conhecido pelos espíritas como obsessão). Neste último caso, a pessoa obsediada geralmente cai doente.
Por outro lado, segundo os xamanistas, espíritos podem existir em árvores, pedras, correntezas, ventos; qualquer objeto, ser ou fenômeno. Alguns podem pertencer a um determinado animal, objeto ou lugar. Outros são livres para se movimentar e agir.
É difícil transmitir ao homem civilizado, para quem a própria palavra espírito lembra superstição, o tipo de mundo onde vive o primitivo homem tribal. Para este, todas as coisas têm significado. O simples caminhar por uma trilha na floresta, a cor de uma pedra, a forma ou posição das folhas de uma árvore, a duração do canto de determinado pássaro, a direção e força do vento, as pegadas de certos animais. Tudo isso, e muito mais, são indicações, sinais, das relações no tempo e no espaço entre os espíritos e o mundo ordinário. O índio tribal, portanto, movimenta se num mundo incrivelmente mais complexo, misterioso e perigoso que o conhecido pelo homem civilizado.
"Na realidade, o mundo é cheio de coisas apavorantes, e nós somos criaturas perdidas, rodeadas por forças inexplicáveis e irreversíveis", diz o personagem Don Juan em Uma Estranha Realidade, de Carlos Castaneda. E continua: "O homem comum, na sua ignorância, pensa que tais forças podem ser explicadas ou mudadas; ele, na realidade, não sabe como fazer isso, mas espera que as ações da humanidade explicarão ou mudarão tais forças, mais cedo ou mais tarde. O bruxo, ao contrário, não pensa em explicá-las ou mudá-las; em vez disso, ele aprende a usar tais forças dirigindo-se em sua direção, adaptando-se a elas. Esse é o seu segredo".
Por causa de sua habilidade de entrar em contato com o mundo espiritual comumente, mas não necessariamente em estado de transe, o xamã age como uma espécie de ponte, um verdadeiro aparelho de captação e transmissão. Por isso, os polinésios descrevem seus xamãs como "santuários", ou "casas de deus", enquanto os negros das Caraíbas explicam suas funções como "uma comunicação telefônica entre os homens e os espíritos".
Um homem de muitos poderes
Como comunicador, o xamã equivale ao moderno médium espírita. Entra em contato com espíritos ancestrais ou de parentes para obter conselhos, consultas sobre curas, e informações sobre o mundo espiritual. Como curandeiro, a sua função é lidar com as más influências de espíritos malignos (talvez enviados pelo xamã de uma tribo hostil, ou por uma bruxa) que visam a possuir ou prejudicar certos membros da tribo ou, mesmo, toda a tribo. O xamã normalmente entra em transe para curar, e pode pôr o paciente também em transe. Além disso, ele pode empregar técnicas médicas mais próximas do mundo ordinário, como poções de ervas ou simples banhos de vapor, mas mesmo essas terapias estão sempre inseridas num contexto de forcas espirituais benevolentes. O xamã pode também combater diretamente os espiritos malignos, com a ajuda de seus próprios espiritos aliados. Normalmente ele adquire esses aliados no decorrer do seu processo de iniciação.
O xamâ desenvolvido apresenta numerosos outros poderes. Pode atacar inimigos pessoais ou tribais a distância; pode emboscar espíritos; prever e manipular eventos futuros; encontrar objetos perdidos ou roubados; identificar criminosos.
"O xamanismo é símbolo da independência e esperança, e não da sujeição ou abatimento. Através dele o poder do mundo que existe além da sociedade humana é controlado e aplicado às necessidades da comunidade. Ao encarnar espíritos, ele permite a mais profunda intrusão dos deuses para dentro das sociedades humanas. E o seu domínio desses poderes afirma a exigência humana de controlar seu meio ambiente espiritual e tratar com os deuses em termos de igualdade" (L. M. Lewis - Estatic Religions).
Alguns escritores modernos tentam explicar a função do xarnã em termos psicológicos. Desse ponto de vista, os espíritos e deuses do mundo das sombras são vistos como expressões personalizadas das forças inconscientes. As doenças, por exemplo, podem ser psicossomáticas, e são, portanto, corretamente diagnosticadas como resultantes de "maus espíritos", de conflitos ou tensões interiores.
Em um artigo sobre o vodu haitiano, o antropólogo Francis Huxley sugere que certos estados estáticos ou de transe permitem que "intenções recalcadas ajam por si próprias e se projetem para fora, tornando se conscientes; primeiro para outras pessoas; depois para o próprio indivíduo; a princípio durante sonhos, e finalmente, num estado de. total consciência". Nessa progressão, segundo Huxley, o iniciado atingiria o total comando de si mesmo. As intenções conflitantes, que antes eram padrões inconscientes de tensão, são resolvidas através do aparecimento de figuras conhecidas de deuses.
Cada deus com seu próprio caráter.
Assim, nessa linha de pensamento, o xamã torna se psicoterapeuta. Primeiro de si mesmo, e depois dos outros. Seu papel seria agir como um canal de comunicação, não entre o mundo real e o mundo espiritual, mas entre o indivíduo socializado sua personalidade exterior e seu inconsciente, isto é, o "si próprio", com todos os seus impulsos ilícitos, medos e desejos.
A interpretação psicológica do fenómeno xamanistico é bastante sensata e, na realidade, não compromete a hipótese de que o chamado mundo das sombras tenha uma realidade concreta. Em termos antropológicos, é compreensível que as primitivas sociedades tribais, por viverem num nível de subsistência e estarem sempre correndo o risco de extinção por desastres naturais, epidemias, fome e guerras, têm que manter um severo grau de disciplina social. É geralmente incorreta a idéia de que a estrutura social dessas tribos é solta e livre. Nenhuma tribo poderia ter vida longa sem poderosas convenções e tabus. O preço, naturalmente, é pago com as frustrações e conflitos a que tal disciplina leva.
A mesma experiência dos psicanalistas
Aqui aparecem as danças tribais, as festas e rituais de êxtase coletivo.
Normalmente é o xamã que lidera e coordena tais funções. Em tempos de crise e desastre, os rituais reforçam a solidariedade tribal. Em tempos de guerra tais cerimônias proporcionam ao guerreiro transportar se a estados de coragem cega.
Nessas ocasiões, o xamã age para libertar ou focalizar as tensões tribais acumuladas. Por causa disso, ele desempenha um papel tão vital quanto o do chefe, na manutenção da estrutura da tribo e da tradição. Ele é o guardião da fé uma força essencialmente conservadora e por isso os missionários cristãos enviados para converter tribos primitivas, invariavelmente tentaram subverter ou tomar sua autoridade.
Como psicoterapeuta tribal, o xamã é o "interruptor psíquico", controlando e dirigindo as energias tribais para onde elas são necessárias, ou podem ser liberadas com segurança.
Muitos antropólogos, geralmente assentados em idéias freudianas, têm sugerido que o xamã é essencialmente um psicótico ou esquizofrênico. Tal condição o revelaria para o xamanismo, e ocasionaria depois os seus supostos poderes paranormais ou iniciáticos.
Mas estudiosos de extrema competência, como Mircea Eliade e L. M. Lewis, argumentam que, embora isso possa ser verdadeiro em casos individuais, certamente não o é para a maioria dos xamãs. Ambos afirmam que a sugestão que pressupõe desequilíbrio psíquico para todos os xamãs é altamente confusa, já que eles, em sua iniciação, passam pelo mesmo tipo de exploração interior (expressa mais em termos simbólicos do que psicológicos) que o psicanalista freudiano é obrigado a passar antes que possa exercer suas funções profissionais.
O futuro xamã, geralmente, é escolhido durante o período da adolescência. Isto pode ser determinado pela sua propensão em cair doente ou sofrer de epilepsia. Geralmente a diferença entre seu comportamento e as normas da sociedade em que vive é a mesma que marca, por exemplo, o futuro sacerdote ou artista em nossa própria sociedade. Em algumas tribos, ninguém se torna xamã simplesmente por querer. Mas, se alguém for "escolhido", não terá condições de escapar. O "espírito guia" perseguirá o candidato recalcitrante até que fique claro que ele não tem outra escolha.
Uma vez escolhido, o candidato deverá se submeter a uma espécie de "curso", que varia de tribo para tribo. Ele pode estudar sob a orientação de um xamã mais velho, ou pode viajar por um certo período de tempo. Mas, cedo ou tarde, passará pela experiência iniciática central que o capacitará a ser um verdadeiro xamã. Pode ocorrer durante um sonho, ou uma doença, mas acontece principalmente em estado de transe, no qual o jovem entra espontaneamente, ou é induzido pela ingestão de drogas. É comum também que esse estado especial ocorra durante uma dança ritualístìca. Durante a experiência, o candidato sente que abandona o mundo ordinário, e é levado para uma longa viagem, como num sonho, através do mundo subterrâneo até chegar ao "paraíso".
A longa viagem no mundo das sombras
Na viagem, ele encontra um sem número de espíritos e de estranhas criaturas. Deve combater e vencer alguns deles para ganhar seu poder. Outros dão a ele certos objetos (um fio de cabelo, uma pedra, couro de animal, etc.) que se tornam os sinais e suportes de suas operações xamanísticas. Esses objetos geralmente têm funções particulares: um é para curar, outro para combater maus espíritos, outro para chamar seu espírito aliado.
A jornada do candidato chega a seu clímax quando alguma terrível figura elementar (os seres que habitam a parte inferior do plano astral, ainda muito ligados á matéria densa) toma o seu corpo, e o desmembra inteiramente, antes de colocá-lo novamente em ordem. Este é, talvez, o principal evento simbólico da iniciação, e existe, como tema, em todas as mitologias e religiões do mundo. Mircea Eliade, em seu livro Shamanism, descreve parte da jornada iniciática de um xamã da tribo Avan Samoyod, da Sibéria.
"Então o candidato veio para o deserto e viu uma montanha distante. Após três dias de viagem ele a alcançou, e entrando por uma abertura viu um homem nu que produzia vento com um fole. Sobre o fogo estava um caldeirão tão grande quanto metade da Terra. Avistando o, o homem nu capturou-o com um grande par de tenazes. O principiante teve tempo para pensar: eu estou morto. O homem nu decepou sua cabeça, cortou seu corpo em pedaços, e colocou tudo dentro do caldeirão. Lá, ferveu os pedaços por três anos. Havia também três bigornas, e o homem nu forjou a cabeça do candidato sobre a terceira, na qual os melhores xamãs eram forjados. Atirou a cabeça num dos três potes que havia no lugar, aquele que continha a água mais fria. Depois, revelou ao candidato que quando ele fosse chamado para curar alguém, se a água do pote da cerimónia estivesse muito quente, não valia a pena trabalhar porque o homem já estaria perdido. Se a água estivesse morna, ele estava doente, mas se recuperaria. Água fria denotava um homem saudável.
O ferreiro então pescou os ossos do candidato do rio em que estavam flutuando, colocou-os juntos e cobriu-os com carne outra vez. Contou seus ossos e lhe disse que tinha três ossos a mais, podendo receber, portanto, três trajes de xamã. Forjou sua cabeça, e ensinou-o a ler as cartas que se encontravam dentro dela. Então trocou seus olhos, porque, ao trabalhar, o xamã não vê com olhos corpóreos, mas com olhos místicos. Depois perfurou suas orelhas, para que entendesse o significado da linguagem das plantas. Depois, o candidato encontrou-se no cume da montanha, e, finalmente, dormindo entre seus familiares."
Esta história é uma descrição simbólica de claros significados místicos. Temos aí a "escura noite do espírito", do cristianismo; a "aniquilação", do sufismo; o "vazio", do yogue que busca o samadhi (êxtase); o "vácuo" e o "último nada" dos budistas e taoístas. Antes do pleno poder, da consciência suprema e da própria divindade, uma pessoa deve morrer para si mesma e renascer. O ego tem de ser temporariamente extinto, como num orgasmo sexual verdadeiro, que os sicilianos, apropriadamente, chamam de "pequena morte".
Mas o desmembramento é também um processo educativo. O xamã aprende a ler dentro de sua própria cabeça, para conhecer seu interior. Freud, Jung, e outros psicólogos já tomaram a mesma direção. As descrições de Jung em sua autobiografia Memória, Sonhos e Reflexões refletem o mesmo sentimento de espanto e terror do xamanismo. E justamente como o analista precisa conhecer a si mesmo para poder analisar outras pessoas, também o xamã passa por um processo similar. É na jornada ao interior de si mesmo que ele encontra as forças espirituais que precisa para atender as suas funções tribais.
O mundo do xamã é incrivelmente rico e ainda pouco explorado. A descoberta dos seus reais significados é tarefa dos antropólogos. Mas, por causa de seus preconceitos, muitos deles perderam a pista na pesquisa e deturparam a correta interpretação da experiência xamanística.
Edna de Andrade
Texto publicado na Revista Planeta
Número 64 de Janeiro de 1978
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